Tinha sempre a impressão de que estava atrasada. Olhava as horas com uma frequência irritante, como se o seu olhar pudesse alterar o tempo. Porém, não tinha a certeza se queria pará-lo ou adiantá-lo. Fosse como fosse, a sensação permanecia. Atrasada? É possível. Talvez devesse fazer o tempo retroceder. Mas até quando? perguntava-se, inquieta, remexendo o relógio, num gesto que já se transformara em tique nervoso. Uma gastura! Sorria um pouco sempre que dizia essa palavra em voz alta, como acabara de fazer. Dá-me um não-sei-quê engraçado. O meio riso fez efeito sedativo. Bocejou, abrindo bem a boca e olhou novamente o relógio. Atrasada! Quase certo! Levantou-se da cadeira e caminhou até à saída. Parou por um momento, segurando a porta entreaberta, como a decidir se sairia ou não. Gostava da sensação de estar no portal. Nem dentro nem fora: entre. Entrespaços, entretempos, entrecampos, entre. Continuou divagando, hipnotizada com o ritmo das palavras. Entre, entretudo, entremundos. Dava por si a falar sozinha, como a cantarolar, até que uma lufada de vento a tirou do transe. Atrasada! Olhou o relógio, batendo a porta. O ar frio que descia da montanha durante o ano todo já havia se transformado em vento forte desde o começo de novembro. Há dias, sentia as pontas dos dedos cada vez mais rijas. Quando a minha mão esfria, neva antes do tempo. Apressava o passo, sentindo o calor que o corpo produzia, aquecendo-lhe as mãos. O ar, a condensar-se à sua frente, fê-la imaginar cavalos trotando. Quando miúda, nas manhãs frias de inverno, adorava levantar-se com o sol e ir ao cercado onde o pai dava trato aos animais. Subia no murado de pedras e ficava a ver o pai na lida. Os cavalos ventavam e ela via dragões. Dava gritinhos agudos ao que o pai barafustava: menina! cala-te, ana! vais assustar aos animais. Nunca pôde conter-se. Cantarolava, gritava, suspirava e falava sozinha e em voz alta ao gosto da sua imaginação. Mesmo agora, já passada muito de moça, continuava a imaginar e a falar imenso. Atrasada! Tinha certeza! Subiu a rua que levava ao lanifício quase a correr. Montado no cavalo-dragão viu o Carlos. Respirou mais fundo. O coração saltava-lhe. Sonhava com o dia em que deixaria a labuta da fiação, vestiria o fato negro, bordado de insígnias, e receberia o título de licenciada em Letras. Carlos estaria lá, a farda cinza de tecelão convertida num belo trajo de lã merino. Sorriria para ela, amando-a como nem podia sonhar. Ouviu o apito. Atrasada! Tarde, mui tarde! Seria advertida. Levou a mão ao bolso em busca do pequeno caderno. Nada. Procurou no outro lado. Não estava. Faltavam apenas poucos passos. Já podia ver a cara feia do capataz a marcar-lhe o atraso. Desesperou-se. Não poderia manter-se lá sem a caderneta. Escrever era a única coisa que a fazia suportar. Metia o pequeno caderno entre as saias, o toco do lápis na orelha, escondido sob a touca e, sempre que a intrigante da Antónia distraía-se, anotava os seus versos. Teve certeza. Retrocederia o tempo. Apalpou o relógio. Um calor bom de primavera aqueceu-lhe os dedos. O cheiro da lã e do tabaco invadia-lhe as narinas. No curral, os homens faziam a tosquia, as tesouras riscavam. Foi quando ele a viu. Levantou-se devagar, fitou-a, desapedernou a rês, acomodou o velo sobre o tendal esticado. O céu azul envolvia a montanha. O corpo dele pesava sobre si. Podia sentir o perfume da terra sob o campo verde que alimentava o rebanho. Sentia o seu hálito de tabaco e pensava em fios. Entrefios, entrecampos, entre. Entrou em casa ofegante, abriu a gaveta da cómoda: lá estava o caderno.
Texto do livro de Nina Veiga: UMA ESCRITA E A RESTANTE VIDA Adquira seu exemplar aqui