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Os vestidos de Maria Amélia

A retomada da costura parece trazer de volta o estar no mundo.

29 de janeiro de 2024

 

Continuaçãoda aceitação da condição humana.

A casa, cozinhar, moer a farinha, lavar o
chão, manter um ambiente significante, para se viver.

(Maria Gabriela Llansol)


Texto de Nina Veiga**

Tomando café da manhã em um hotel do Triângulo Mineiro, escutei um depoimento interessante de uma educadora. Na época dos preparativos para o casamento de minha filha, disse ela, resolvemos fazer uma lembrancinha diferente para as madrinhas e convidadas mais íntimas, como avós e tias: um pequeno vestido de noiva, costurado e bordado à mão. A mãe zelosa se emocionou ao partilhar o que sentiu durante os meses que antecederam ao casamento da filha única enquanto costurava, noite após noite, os pequenos vestidos de renda, seda, pedrarias e brocados. Para ela, mais do que a festa, mais do que a sensação de "passarinho deixando o ninho", mais do que todas as outras emoções que a atravessavam naquela época, o costurar dos pequenos vestidos possibilitou uma vivência muito forte e profunda em relação às sensações que o casamento da filha promovia. Fiquei pensando nesse poder das manualidades. As mulheres, desde o começo do mundo, se dedicam de algum modo às artes-manuais. Até o pós-guerra, quando a industrialização terminou de tirá-las de casa, afastando-as ainda mais das lidas domésticas, dos filhos, das agulhas e linhas, todas as mulheres tinham íntima relação com atividades feitas com suas próprias mãos envolvendo panos, fios e lãs. Sentar-se serenamente para costurar é uma atitude que permite a reflexão, cria um tempo sem tempo, um espaço de sutil meditação. As mãos hábeis executam a tarefa e o pensamento viaja, se organiza, lembra, elabora. Enquanto no colo, o trabalho descansa, os olhos se perdem no horizonte da mente em total suspensão. Instante parado no tempo oculto da vida. Vida suspensa no tempo do corpo. A retomada da costura parece trazer de volta o estar no mundo. As ideias se organizando ponto a ponto promovem uma força que amplia a capacidade feminina de gerar o mundo em seu próprio corpo. Costurar, bordar, fiar, tecer, até mesmo cozinhar, são atividades culturalmente vinculadas às mulheres desde o início dos tempos e que hoje estão cada vez mais distantes de nós. No lugar desses afazeres, outros que passam longe dos colos, passam rápido por mãos ansiosas e deixam pouco o que pegar e admirar.*

*Longe de querer um enfoque nostálgico, essa crônica pretende uma reflexão sobre o tempo feminino engendrado pelas artes-manuais. O que se sente, pensa, lembra e se movimenta enquanto sentamos calmamente para tecer artes feita pelas mãos? Atividade promotora de um tempo feminino de origem remota, ancorado no movimento sutil do corpo que parece ser o mesmo tempo do aninhar, do zelar, do aquecer o outro, o mundo e a si mesmo. Tempo outro, diferente daquele que move as demandas sociais modernas. Tempo elástico, suspenso entre o coração e o ventre. Tempo movido por mãos que sabem sem saber, que fazem fazendo pela sabedoria do corpo. Tempo feminino que afirma e constitui.

 

**Texto do livro de Nina Veiga

VEIGA, Ana Lygia Vieira Schil da [Nina Veiga]. Uma escrita e a restante vida. Juiz de Fora: Edições Macondo, 2022.

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