A Deusa Aranha e a Mulher Pensamento

Tecendo os fios da liberdade na escrita feminina.

Texto de Aline Picardi*

Con-textualização

O acompanhamento dessas letras pode conduzir a uma experiência estranha, pois trata-se de um texto intensivo de um fluxo de consciência cuja autoria designo à Deusa aranha e à mulher pensamento... E, ao topar acompanhar, iremos transitar no território onírico e produziremos juntos um “corpo-de-sonho” onde cantam as avós, e tentaremos atualizar esse antigo lugar bem conhecido pelas mulheres. Pode acon-tecer de que sentido não se faça com tanta clareza. O que mais importa neste texto é a vibração das linhas.

Metamorfose

Do ventre da Aranha nasce um fio. 0-------------------------------------

Pelo mundo a aranha se transfigurou em várias Deusas, versões antropomórficas do ato de fiar e tecer. Atos atribuídos desde os tempos antigos ao universo feminino. Na Grécia, as Moiras, tecelãs do destino, teciam fios férreos dos quais não se tinha escapatória. No Egito, Neith teceu o mundo em seu tear cósmico, assim como para os hindus: Maya teceu a ordem cósmica ou o mundo de ilusão.

Para os povos nativos norte-americanos keres, Tse che nako, a mulher pensamento, era a responsável pela criação e manutenção do universo. Outra de suas formas era Sus’sistinako, a deusa aranha, a dona do vazio, que, com fios feitos de sons e vibrações, tecia toda sua criação pensando, falando, cantando, fiando...

Há também a história de Aracne, condenada por Atena, transformada em aranha como castigo divino. E há ainda Ariadne, que, ao contrário das Moiras, trazia a possibilidade do infinito em seus fios.

As tecelãs e entidades do destino possuem uma compreensão da vida no corpo, ou seja, da imanência, conectadas com o ambiente. Fiando e tecendo os fios da vida tendo o controle sobre a duração, o tempo da vida, pois, além de criarem o fio, também têm o poder de o cortar.

Tecer uma teia, uma rede, uma trama, equivale à composição de um contexto, contexto onde estamos e do qual não podemos fugir. Dentro desse contexto, a gente cria e cumpre um destino. Em uma cultura do ressentimento, a produção de ideais esconde o trabalho oculto das tecelãs.

Contexto, tessitura enquanto corpo, são as patas das aranhas sobre a teia, e as mãos das tecelãs sobre o fio, ou mesmo sobre o papel da escrita. Sinapses, atitudes, posturas, pequenos gestos tecidos na relação com outro – atitudes que determinam as qualidades das relações que vão produzindo inclinações e tendências. As disposições conectam e desconectam os fios. A trama da vida tecida no tear sagrado é inexorável, não cede a súplicas, tecida com rigor implacável.

Os ideais, desconectam as patas das teias-redes, prejudicando a percepção das forças que estão no horizonte. Como as tramas estão enlaçando nossas vidas? Se não observamos as forças somos devastadas por elas. O te de contexto é o mesmo de tear. Há movimentos que não estão sob nosso controle... Há movimentos que não estão sob meu controle...

Tropecei no vão! Furacão! Tempestade! O vento é muito forte!

Desemaranhamento:

“Tudo que move é sagrado e remove as montanhas com todo cuidado, meu amor...”

Ao compor essa escrita, os dedos se movem rápido, transformados em patas de aranha e ao acompanhar esse movimento, teceremos juntos uma teia de pensamentos. Dedos-patas em fuga do medo e da esperança, produzindo coragem no ventre escuro da aranha. É uma tomada de decisão.

Dioniso canta:

“Sê prudente, Ariadne!…

Tens pequenas orelhas, tens minhas orelhas:

Põe aí uma palavra sensata!

Não é preciso primeiro odiarmo-nos se devemos nos amar?…

Sou teu labirinto…”

O ventou soprou por aqui. Um silêncio se fez. Não tenho mais nostalgias. Acho curioso...

A aranha me escolheu. Eu nem pensava nela tanto assim. Mas ela pediu para escrevê-la.

Após observar um pouco, seguindo os caminhos dela, encontrei Dionísio na sombra entre a parede e o sofá. Com a cara na parede. Me vejo lá. Presa em sua teia.

Me vejo aqui. No canto da sala. De cara com a parede. Me vejo aqui. Com pernas livres, abertas e vivas. Ela me é. A teia, suas patas, o escuro e a parede.

Uma seda em minha barriga. Os lençóis da cama onde durmo. Eles me são. Obedecem às fantasias da mente neurótica. São dobrados de uma determinada maneira. A única que sei fazer. Gosto um pouco torto.

Nos vi aranhas nos pequenos gestos de um cotidiano trágico. Encontrei Dionísio atrás do sofá. Mas eu queria um amor de índio. Era preciso que a Europa cuspisse as Américas no meu pensamento. Para que minhas salivas falassem do chão onde agora piso. Para assim eu grudá-la nas minhas patas.

E com fios da paixão cedidos por Eros, essa escrita fosse fiada com a letra viva do meu lugar. As palavras caminham com patas sutis, que entrelaçam pensamentos vivos com quem lê.

Por que falar das tecelãs? Por que lembrar das avós? É porque dos ventres e cantos originários se fez nascer esse mundo.

No qual estamos nós AGORA (amanhã ou ontem).

Sem elas não haveria esse encontro. Sem elas não haveria esse chão. Esse caminho em nossos PENSAMENTOS. Que para Spinoza...São também CORPOS.

Um corpo-ideia pata de aranha que caminha e lança sua teia. Porém, há de se ter outra maneira de sê-la. Aranha-teia, Teia-ranha, Ariadne-fio. Ariadne-linha de FUGA. Linha de ENCONTRO. Por isso lembrar do mito me faz querer esquecê-lo... Um tanto de espírito deseja criar corpo nesse texto que se atualiza. Ele poderia ter sido escrito de tantas outras formas...

Mas é assim que ele se fez nascer como uma volta, uma rota de fuga de afetos tristes que se fizeram sentir na linha do horizonte. A liberdade na escrita é a rota da alegria que tenta encontrar passagem nesse corpo afetado pela angústia num momento de desemaranhar conexões.

Como assim? Uma neta de Aranhas? A Deusa Aranha e a mulher pensamento.

É real? O que é real? Realidade?

Compreender não ajuda tanto como ato de se entregar ao segundo passo, o milagre de caminhar fabricando um futuro. Mulher aranha mantenedora da conexão pulsão-espírito. Conexão essa que foi queimada, estigmatizada e humilhada junto às bruxas na inquisição. Fogo à vista. Fumaça. Cinza. (É preciso morrer para viver?). Coisa de mulher. Feminino que sabe-fazer amor fonte de renascimento. Palavra sensata. Palavra que sente. Inquisição. Polícia. Psicologia. Psicanálise. Psiquiatria. (Todos começam com P e guardam suas semelhanças). Ainda assim, reconheço a importância de aprender a escutar o não dito.

Empregar a palavra entre rastro e mistério, substância, secreção da barriga opaca e escura da mulher aranha, fibra acoplada à palavra que narra o acontecido e coloca as palavras para caminharem junto às patas e aos pés. O real acessando o simbólico. Acessar, penetrar, picar, afetar... E assim a mulher pensamento junto à deusa aranha tece um véu estrelado em plena luz do dia.

“O mais profundo são os astros” Coccia

“O mais profundo é a pele” Paul Valerie

O corpo é afetado por uma substância cujo principal atributo é a alegria. A angústia é uma afecção, um momento, uma descontinuidade temporária produzida pela experiência do real no campo do outro fazendo vacilar o Ser. Mau encontro. Afetos tristes plantados nos vãos de uma sociedade impotente e triste que sobre codifica o desejo com a noção de gênero.

Devir mulher:

As tecelãs conhecem o silêncio-que-fala, o invisível entre os fios, entre as figuras performadas pelas identidades que se apresentam em um teatro descolado das forças que produzem diferença a todo momento. O teatro do par ou ímpar, o binarismo, a guerra dos gêneros.

Por isso, para falar das avós, é necessário distinguir o teatro da força. Eu e você carregamos a força das avós nas pernas e nas pontas dos dedos e também em nossas gargantas ninho de “palavralmas” que criam mundos. Ao redigir essas letras faço tremer os contornos das formas e figuras da minha linhagem. Mulheres fortes que não conheciam os livros e escreviam apenas receitas e preces de benzimentos. Postergadas sim, mas ainda assim criativas e fortes.

O inconsciente não é familiar.

O que gera o compromisso de nutrição e sobrevivência?

Falar em nome de quê?

Mãe da mãe

Filha de cigana de origem desconhecida, nasce onde também nasce o Rio São Francisco, casa-se nova, pare seis filhos, cinco delas são mulheres, apenas um homem. Casada com um homem mais velho que já havia se casado em outro momento e também possuía filhos do casamento anterior. Seu marido morre e os filhos do antigo casamento os expulsam da fazenda onde moravam. Sozinha com seis filhos, crianças que trabalharam duro desde a tenra infância... Na fazenda que não era dela, sabia tecer fios do algodão... E assim fazia para os outros para garantir o sustento da sua linhagem. Era alegre.

Minha mãe, a filha caçula dela, com treze anos fora empregada doméstica da casa da:

Mãe do Pai

Mulher que pariu 21 vezes, somente 11 completaram a idade adulta. Dos 11, quatro eram mulheres. Todas elas especialistas nas artes da casa e também beatas. Uma mulher muito dura, assim ouço dizer dela. Também era tecelã e suas filhas, todas amigas das linhas...

A mãe

Doce e forte, não teve infância, conseguiu se formar na escola com dificuldade, pois precisava ser escondido, na visão da avó, mulheres que estudam não prestam. Conseguiu, comprou sua casa, construiu um chão e cruzou o planeta com seu par, meu pai. Ambos me fizeram nascer em Bagdá.

E assim se fez, desde nova, meu principal trabalho foi aproximar continentes separados, um demorado trabalho de costura.

O teatro das árabes difere muito do das brasileiras, apesar das semelhanças. Muito difícil se apaziguar numa imagem estável de mulher. A desestabilização tornou-se sina e com ela danço. In-finitude à vista.

Avó do Pai

Indígena Puri

Petara, Petara / Poteh miripon / Ximan xuteh / Okora dieh

Lua Lua /Luz da noite / O caminho é bom / No céu está você

Dessa cantiga, restou na boca do pai a outra canção:

Lua, luar, pega essa menina pra você criar, quando criar, torna a me entregar.

Assim, perdeu-se o medo da noite. Filha da lua. Luar sereno e companheiro. Noites acordadas ao lado de um caderno. Escrever com ela. Foi assim que começou.

“No início era o sopro e o sopro estava com a dEUsa”

Diana é o nome da gata que mora conosco.

Singular e efêmera

Diana

Os corpos respiram e não necessariamente possuem pulmões. As mãos tecem. As palavras criam. Mas esse mundo foi feito mesmo é para respirar.

Mulher pensamento – “Razão-flor”

Da aranha ao beija-flor no jardim. E a gata o observa. Diana é seu nome. Aos poucos desfaço o contorno da mulher que sempre serve. Filosofia, Psicologia, Poesia, Cantar e Dançar. Flor e razão. Uma mulher que pensa...

Pensar, sentir e querer.

Rastejo, cambaleio, ando, nado, corro, caminho, deito. Choro. Rio. Tenho medo. O amor me dá coragem.

Só questiona o poder quem tem poder. (Acho que disso se trata o Samsara e toda ficção, quando Maria me falou de Ana acessei o filme de Maria. Não sei nada sobre Ana)

Já guerreei. Hoje quero criar e ver as folhas secas voarem no vento.

Canção de Ninar. Território dos sonhos.

Uma Puri canta pra lua. Minha bisavó. Eu a senti com mãos perfumadas quando tomei o chá dos índios. Perfume de flor e de alimentos servidos por mãos que me pediam que continuasse. As antigas moram em mim... Tento fazê-las novas.

É tão fininha a percepção da força que nos faz caminhar. Fina e invisível. Nada nova. Antiga como o dizer da minha bisavó. Antiga ainda mais. Não nos leva a lugar nenhum. Ela só pede que a deixe passar.

Me lembro depois que pari. O raio de sol do meu primeiro dia de Mãe. O corpo quebrado dando passagem à força de fazer nascer. A vida se criou em meu ventre. Leite. Cheiro de amor.

Física e psíquica. Teia e aranha. A deusa. Mulher. Pensamento. O fio da meada.

O mistério que se reconhece como tal não inspira confiança. Há sempre mais mistério. Seguro firme esse fio invisível.

A direção guia o movimento. Algo de raios solares e luz da manhã no inverno. O quente da xícara de café nas mãos enquanto respiro junto a guiné que aguei. Cascas ardidas de ego rompido abrem espaço para uma vontade de correr e ouvir o pulsar forte do coração enquanto tento respirar melhor.

Da alegria da corrida me nasce uma vontade nos dedos. Quero falar das tecelãs, ou melhor, do tecelão. O pássaro construtor dedicado de ninhos, que após construí-lo dança em torno de sua criação para atrair a fêmea. E ainda por cima ajuda os “vizinhos” a cuidarem dos filhotes enquanto os pais vão à procura de sementes para os alimentar. Os tecelões são sociáveis, e seus ninhos tecnológicos.

Asas para voar e ninho para compartilhar. Vale a pena conhecê-los.

A direção desse texto é a do voo. Firmeza na decisão do cuidado de si e avaliar a consistência das fibras.

“Tudo que move é sagrado”

Entusiasmo só se vive.

Soou o alarme vital. A crise se anunciou. Hora de agir. Não deixar a boca seca.

Lançar-se no abismo.

A fonte que jorra vontade de dizer.

A-con-tece. Acontece.

Acontecer.

A maioria da população do planeta é minoria. Começando pelos minerais, vegetais, animais e grupos de humanos. A vida escapa. Pergunte a uma criança como acon-tece, pergunte ao louco, pergunte à mulher que não quer ser mãe. Pergunte à mãe. Pergunte ao fogo sobre:

Morte

Dor

Solidão

Silêncio

Cosmos

Tempo

Velhice (o destino dos velhos)

Ruptura

Surpresa

Angústia

Acontecimentos improváveis

(a resposta do fogo não serve ao capital nem ao Estado, nem aos Pontífices).

Moléculas se agitam no trepidar do fogo. Feminino e singular. Condições para uma vida coletiva. Encarnação da vida no chão, teia, pata, espírito. Aranha.

Natureza e cultura. O que pode um corpo?

Deusa

Aranha

Mulher

Pensamento

Contexto.

Poderes tentam nos convencer de fatalidades inexistentes. Uma delas pode bem ser o feminino primordial. Devir mulher das mulheres, será?

Esse texto deixa de dizer de Penélope que também era tecelã.

Vergonha de ter encarnado Penélope como destino inevitável. Despossuir Penélope. Essas mãos tecem um chão por meio dessas palavras que viram pássaro. Ahhhh! Como é bom voar. O vento me carrega.

Pés no chão. Tenda filosófica. Ouvidos emprestados por Dionísio. Calor da lã. Vida que se faz nascer a cada instante. Semente. Broto. Flor. Adubo. Terra. Infância. Novo mundo bebê. Bisavó luar estrelado e canto. Rio que corre e desagua no meu sangue carregado pelas pernas que caminham e dedos que escrevem.

A solidão do processo de olhar para o caminho, do susto de tropeçar no vão... Você, mulher, conhece?

Ah! A água que me banha e aquece, o calor da roupa que conforta. Essa cadeira na qual me sento e me coloco a imaginar o que acontece a você que me lê.

Se você chegou até aqui. É porque disse sim para acon-tecermos juntos.

Agradeço

Daqui. Da encruzilhada...

Noite estrelada. Céu enluarado. Cabelos brancos. Batom vermelho. Vontade de dançar! A música modifica pensamentos que choram despedidas. Um tanto de tambor leva meu coração à garganta que sabe gargalhar.

Um tanto de silêncio me fez sentir as fibras da boneca que construímos juntas com a mão e coração. O nome dela é Intuição. Palavra tão gasta quanto a do amor.

Tentei evitá-la para apreendê-la em tudo que vibra. Gratidão pela companhia até aqui. Com a tesoura cortemos então o fio desse corpo-de-sonho. O segundo passo é muito importante na fabricação do futuro. A direção guia o movimento... Ação sublime de compor com-textos. Não gastar a palavra amor em vão. (Tudo bem o tropeço). Despeço.

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*Aline Picardi é psicóloga, pesquisadora das Artes-manuais-para-terapias, mestre em Psicologia Social. Atua como psicóloga clínica a partir da psicanálise revisada pela Filosofia da Diferença. Estuda o inconsciente em interface com estudos animistas que dão enunciação aos saberes dos povos originários. Aposta na fronteira entre Arte e Clínica.


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Ilustração da capa: Arachne-Gustave Doré
Ilustração do corpo do texto: Cartão postal do projeto Jane Artisans (aliança com mulheres da Amazônia para tornar visíveis seus conhecimentos e reduzir lacunas por meio de suas propostas artísticas)