No fiar, vieram pensamentos, na lã, o sofrimento...

o tempo que passou desde então...

Texto de Maria Valdês Ramires*

 

Sobre o material-dispositivo lã bruta

Enveredo por entre os fios-devir, no emaranhado de lã bruta, cheiro forte e até um pouco áspera para as mãos que tateiam. Tamanho foi o encontro com o dispositivo ancestral, que rompeu em mim algo da ordem da sensação, e lágrimas aos montes tornaram difícil a visão, mas clarearam ao mesmo tempo - isso é possível? - o sentimento de ter lágrimas a chorar, lágrimas não choradas no indizível sofrimento latente.

E pensei, com as mãos em movimento, no gestual que visava descobrir os fios que ali estavam ainda ofuscados pela matéria bruta, a lã desconhecida, a lã bordadeira do entre-Douro e Minho. Todo um universo de saberes e fazeres se apresentou a partir de então, da fiação, das fiadoras portuguesas, mulheres exploradas em seu trabalho, mulheres sofridas e sobreviventes desse meio masculino de uso e abuso. Mulheres que sobreviveram ao sádico patriarcado que impunha regras e normas, tirando-lhes até mesmo as escolhas de ser ou não mãe.

Entrei numa aula particular meio assim sem jeito pela minha imensa ignorância sobre o assunto: fiação. Do que se trata quando falamos fiação? Fiar o quê, exatamente, o nada e o tudo, a base da tecelagem, base civilizatória na cobertura dos corpos nus, base da vergonha que entremeia a cultura e faz algum fino fio de fronteira natureza e cultura, ilusão de separação. Somos natureza. Naturais, humanos e mortais como tudo.

No fiar, vieram pensamentos, na lã, o sofrimento, nos entrelaçados sentidos dos tropeços, dos erros e acertos, o fiar me causou uma certa prestação de contas, o ir adiante e a sensação de estar estranhamente diante de um conhecido, de já ter vivido isso antes, já ter feito esse gesto, já saber alguma coisa sobre o tecido entre laços e giros, a roda, o tempo, o mundo.

O tempo que passou desde então não foi pouco não, considerada a proposta do curso. Fiquei retida no módulo III, como se precisasse não do tempo em si, mas do espaço que o acompanha. Precisei desse espaço para tomar fôlego e expor essas sensações terapêuticas, vivas, sensíveis.

E hoje, em outra tomada de ar, respirei lentamente e profundamente para começar a escrita sobre o meu encontro com a lã, matéria bruta primeira, fresca, com cheiro forte, agradável, e ao mesmo tempo um encontro sofrido.

Entre o dia lá atrás (acho que quase 2 meses) e o agora, muitos feitos, muitos outros interesses, obrigações, leituras e conquistas, mas o laço a ser dado com a lã, só pode ser feito hoje na solidão do meu espaço de trabalho, na lentidão dos pensamentos, no reconhecimento da potência da matéria viva.

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*Maria Valdês Ramires é psicóloga, atuando em Porto, Portugal e pesquisadora da Pós-Graduação Artes-Manuais para Terapias.

O texto narra o processo vivenciado no Módulo Terceiro da Pós-Graduação Artes-manuais para Terapias.