Regina Terra

Seus olhos eram mar, intensos.

Texto de Luciana Aguilar*

Seus olhos eram mar, intensos. Com frequência, eu tentava não ser arrastada por eles, mas algo me prendia, me fazia retornar, como se ali, naquele olhar eu estivesse segura. Às vezes, esse mesmo olhar de segurança mudava e se transformava em um mar profundo, escuro. Nesses momentos era possível ver sua tristeza, quase dava para tocar ou ser engolida por ela. Era assim que me sentia quando me aproximava dela nesses momentos, totalmente engolida por uma tristeza que eu não sabia explicar. Noutras vezes tinha um olhar de mar revolto, era um olhar mais dançante, repleto de boas memórias, seu corpo todo se agitava. Como seu olhar, ela dançava. Nesses dias, ela cozinhava doces.

Não era muito de falar, raramente sorria, os lábios nem se via. Sua pele macia, com a maciez da idade que se apressava em chegar. Mesmo macia, a pele ressecava, parecia terra pobre em nutrientes. Aliás tinha cor de terra, marrom, terra ressecada. Seu corpo triste se movimentava com a lentidão do tempo e do peso.

Mas nem sempre foi assim. Na meninice teve alegria, curiosidade, faladeira que só, vivia a puxar assunto com os mais velhos e a pedir que contassem suas histórias de vida. Quando jovem, ria com a intensidade do vento numa mudança de estação, ria dançando o corpo e gargalhava. A pele nesses tempos de juventude era terra de mangue, suja de areia, macia como argila, e refrescante como a água.

Regina Terra é uma mulher cheia de histórias, como todas as mulheres, histórias que podem até parecer semelhantes às suas, às nossas, e é por isso que preciso registrar aqui que: não sei se são histórias verdadeiras. O mistério que envolve seu olhar também envolve suas histórias. Às vezes, enquanto me contava uma história, ria com o olhar, mesmo quando a memória contada era triste ou angustiante. Ela contava muitas dessas histórias como se fossem suas, eu, quando menina acreditava em todas. Depois quando jovem, desconfiava, e tentava a todo custo saber onde estava, o que eu considerava ser, as mentiras inventadas. Agora, embarco nas suas narrativas, tento decifrar aquele corpo, aquele movimento que faz com a cabeça ao contar. Já não importa mais se verdade ou não.

Contadora de causos eu diria, a gente só vai ouvindo e se entregando. Ela se refazia enquanto contava, se reinventava a si mesma, às vezes, mudava tudo, juntava uma história à outra, dizia não conhecer histórias de sua vida, que esqueceu tudo. Depois contava de novo. E, entre uma contação de histórias e outra, ela se reescrevia, se renarrava, se relia. Dava para ver. Ah, com certeza.

Regina era uma mulher das artes, embora não soubesse o que era arte. Ela fazia arte nas coisas do cotidiano: às vezes, com o jantar que precisa ser posto à mesa; às vezes, com situações como uma simples ida à feira. As coisas levavam o tempo dela para ficarem prontas, em outras ocasiões se desmanchavam e se perdiam.

Naqueles tempos, Regina pensava ter desistido, ficava o máximo que conseguia na cama, sem se mexer, sem abrir os olhos, mas logo, se levantava para dar comida aos gatos. Eram sete gatos, impossível não lhes dar atenção, às vezes, penso eu, que eram eles que faziam a mágica de tirá-la da cama, às vezes, sei que não. Regina se alegrava mesmo ao contar suas histórias.

Andava sempre sozinha, embora tivesse amigas, estava sempre sozinha. Construía muros sempre que podia, um tipo de barreira para não se deixar mostrar para as pessoas e os derrubava com a mesma frequência. Mesmo sozinha, e quando conseguia, deleitava-se em fazer o que mais amava, escrever. Não que estando acompanhada não escrevesse, mas quando estava sozinha, era só o que fazia, dia e noite, não comia, não dormia, só escrevia.

Escrevia coisas sem sentido, diriam, palavras do fundo do mar, escrevia dores e alegrias, frases e olhares. Escrevia. Vez ou outra escrevia uma memória. Os escritos se perdiam, eram rasgados, abandonados à própria sorte na intenção de que alguém os lesse, mas se eram encontrados ou se perguntavam sobre eles, logo Regina desconversava, ou dizia não ser dela. Algumas vezes até afirmou que não sabia ler.

Quando criança, Regina era franzina, era dessas crianças que vivem no mundo da lua. Estava sempre descalça, seus pés gostavam de pisar a terra e o chão frio. Sua bisavó, uma senhora gorda, daquelas com fartura de carne e comida boa na mesa, preocupava-se.

“Mas essa menina assim tão fraquinha não vai vingar não.”

“Mas vó” – dizia a mãe – “a menina já vingou, ela tem oito anos, olha!, é forte a garota.”

Regina não entendia, seguia indo, entre a mãe e a bisavó, pisando no chão de terra batida. Terra assim dura.

Tinha aprendido a ler e escrever há pouco, e ainda não sabia, mas queria ser escritora. Ela escrevia histórias mentalmente, como se não fosse possível colocá-las no papel, ou ainda não sabia bem como.

“Bonito isso de histórias, né?” - dizia para sua mãe.

Ela estava acostumada a ouvir Seu Zé contar histórias. Eram histórias assim de pescador, daquelas que aumentam os fatos ou que são descaradamente inventadas, e ela, ainda menina, sempre acreditava. Ela sabia ser verdade. Talvez daí a constante mudança das próprias histórias.

“Seu Zé disse.” - ela repetia quando alguém duvidada.

“Deixa de ser boba menina.” - a bisa alertava.

“É impossível uma história dessa.” - dizia a mãe. “Você acredita em tudo que te contam, não pode Regina, acreditar em toda história que ouve.”

Regina vivia no mundo da lua entre pensamentos, mas não imaginava. Parece que estava sempre a sentir a dureza nas mãos, como a terra de chão batido que pisava.

Certa vez, talvez tenha sido a primeira vez, foi mandada para a diretoria da escola, a reclamação da professora era:

“Conversa demais.”

Regina, talvez por ingenuidade de menina ou por não ter nunca tido essa experiência, não sabia o que significava isso de “ir para a diretoria”, achava que era só ir lá conversar com a diretora, e foi. Chegando à sala que antecede a sala da diretora, viu pela primeira vez: a secretária usava uma máquina de escrever.

Ela já tinha visto muitas máquinas de escrever, não era de se espantar ver mais uma, mas nunca a vira assim, sendo usada.

Ela parou ao lado da mesa da secretária, a máquina era grande, as teclas se encaixavam aos dedos da mulher, sabe como é? A digitação rápida era música para Regina. As letras saíam perfeitas no papel, tinham cheiro, nunca tinha sentido esse cheiro antes; decidiu então que aquele era cheiro de máquina a todo vapor.

A folha branca ia sendo desenrolada, encurtava de um lado, crescia de outro, toda vez que a secretária puxava uma alavanca, Regina achou que fosse para dar corda na máquina, demorou a perceber que quando a secretária fazia isso, a folha é que girava.

O som da máquina sendo digitada a transportava para outro mundo. Ouvia as letras, lia mentalmente a história que a secretária digitava, era tão bonita. Falava de vento e mar. Sentia o cheiro da maresia e da terra molhada de verão, logo após aquela chuva pesada de fim de tarde. Ela lia a dança alegre que saia daquelas páginas que antes entravam branquinhas na máquina. Lia as saias de chita a rodarem nas danças de ciranda. Ouvia o cheiro da fogueira de São João naquelas batidas carinhosas e dançantes da mulher na máquina de escrever.

Sem tirar os olhos dos dedos ágeis da datilógrafa, sorriu. Soube naquele momento: é assim que nasce uma história, na máquina de escrever, pensou, a máquina fazedora de histórias. Bastava pousar os dedos na máquina que a mágica se fazia, mover os dedos rapidamente talvez fosse necessário e, pronto, a história apareceria na folha.

Foi interrompida do devaneio pela diretora, assustou-se, como se tivesse acordado de um sonho bom. Entendeu, enfim, o que era ser “mandada para a diretoria”. Mas não importava, mesmo com os sermões da diretora, ou por quanto tempo esperaria sua mãe chegar à escola para ouvir as reclamações da professora, a partir daquele momento, ela era constantemente vista por lá, usava das arteirices que conhecia para ser encaminhada àquela sala.

Não demorou muito, a professora percebeu suas tramas para chegar à diretoria, depois disso, por mais que Regina tentasse, não conseguia mais sair da sala de aula e chegar perto da máquina fazedora de histórias.

Assim que teve autorização para andar sozinha de ônibus, matriculou-se num curso de datilografia. Lá descobriu as regras para datilografar e, embora fosse a mais lenta da turma, amava o curso. Sentiu muito quando se formou. Queria continuar, mas não podia. Queria uma máquina em casa, mas não tinha.

Alguns anos depois, trabalhou como datilógrafa e foi um desastre. Uma semana após ser contratada neste trabalho fora demitida. O motivo? Não sabia usar a máquina de escrever. Todas as manhãs, ao chegar ao trabalho estava alegre e com olhos e mãos ávidos para iniciar a música. Ouvidos ansiosos pela música e dedos prontos para aquela dança. Eram pilhas e pilhas de papel a serem datilografados, manuscritos dos homens dos mares, com letras difíceis de serem traduzidas, e palavras desconhecidas por ela. Vivia a consultar os dicionários de legislação marítima ou impostos tributários e, algumas vezes, precisava procurar em jornais velhos e amarelados, pesquisar códigos e parágrafos e seus significados, para assim saber o que precisava ser datilografado, isso a atrapalhava demais. Decidiu que não perderia mais tempo com os livros para não quebrar a música que a digitação rápida de seus dedos produzia. Passou a escrever o que entendia, reproduzia exatamente o que estava escrito nos calhamaços de folhas que lhe entregavam, com erros de ortografia, já não corrigia mais a digitação. Passou assim a digitar mais rápido e o prazer pelo trabalho voltou. Mas foi interrompida, certa tarde, pelo chefe do departamento, todas as páginas dos últimos três dias foram recusadas e precisariam ser refeitas. O homem de gravata e feições sérias a chamou, dizia ter estranhado o fato da mudança tão repentina na qualidade de seu trabalho, Regina tentou explicar, por algumas vezes, repetiu sobre a dança das palavras no papel, e como era impossível ouvi-la se, a todo momento, precisava parar para entender a letra. Pediu que os homens dos mares escrevessem melhor, com aquela letra seria impossível, reclamou das palavras sem cor, disse que não tinham cheiro, e isso atrapalhava seu serviço. Argumentou e o homem de gravata se irritou, interrompia suas frases, e explicava como se ela tivesse nove anos o que esperava de uma datilógrafa. Ele não entendia, ela não entendia. Retrucava, mas não foi ouvida.

Certo dia, me contou ter acordado assustada, tivera um sonho, e embora não se lembrasse, ficou a sensação espalhada pelo corpo. Tentou ainda voltar a dormir, não amanhecera, a sensação insistia em mantê-la acordada. Não sabia bem descrever, se o sonho a afligia ou se era um incômodo ou só uma lembrança.

Levantou.

Os gatos logo a seguiram, a rondavam com miados, um pedido de que abrisse a porta para saírem e verem o céu, mesmo que cinzento ou chuvoso, tinham um jeito bem específico neste pedido. Abriu a porta e espiou o dia.

Passou um café e, mesmo que o sol ainda dormisse, decidiu escrever.

A lembrança que a tomou naquela manhã era antiga, pensava nisso com uma frequência insistente. Não se lembra ao certo a idade, talvez dez, talvez doze.

Escrevera um livro.

Diziam dela, que gostava de ler, mas ela mesma não sabia. Naqueles tempos, tinha muitas dúvidas. Às vezes, pensava, o que incentivava sua leitura era uma certa concorrência entre ela e a irmã, quem terminaria de ler primeiro? Muitas vezes ela lia os dois livros, o escolhido por ela e o outro, escolhido pela irmã. Não era algo que fazia para se exibir, mas era também: a mãe elogiava, era a única coisa que fazia bem, ler.

Mas não gostava.

Depois de ler o livro escolhido pela irmã, contava a história para ela, para que a mãe não brigasse, tinham isso de contar para a mãe a leitura, um tipo de incentivo, não sabia.

Era assim: aos fins de semana, iam animadas à biblioteca escolher livros, acompanhadas pelo pai, era a rotina quinzenal deles. Talvez a única rotina próxima ao pai, mas depois chegava o insistente pedido da mãe: “conta a história para mim?” ou “sobre o que era o livro?”. Não gostava, mas sempre contava.

Um dia, decidida, ela começou a escrever. Era uma historieta para alegrar a prima que adorava ler e que reclamava “já ter lido tudo daquela casa”. As visitas da prima eram semanais, então, mesmo sendo mais nova, ela lia as revistas que chegavam, os gibis que eram muitos e os livros da biblioteca, mas a prima, diferente dela e da irmã, não precisava contar, só ler.

Regina não me contava nada sobre a escrita, o título ou o assunto daquele livro, dizia que foi escrita fácil, leve, saborosa, foi lá e escreveu a história. Não na máquina fazedora de histórias, mas à mão.

“Era frustrante.” - disse-me uma vez.

Ela tentara a todo custo conseguir uma máquina. Eu sabia, a conhecia muito bem àquela altura.

Viu-se obrigada a “passar a limpo” aquele texto, e precisava ser com letra bem caprichada e legível, exigências da bisavó que gritavam em sua cabeça.

“Ah, menina! Assim não dá, não consigo entender sua letra. Sabe que eu mal sei ler.”

Mesmo não tendo mostrado a ninguém, as vozes eram ensurdecedoras. Aí, o sofrimento se fez. Enquanto escrevia, pensava num plano para usar a máquina da secretária.

“E se eu for à noite na escola? A escola está aberta, tem aula à noite e a secretária não estará lá.” – dividiu a sua angústia com a melhor amiga.

“Regina não dá, se a secretária não está na sala, eles trancam.” A amiga tentava a todo custo fazê-la mudar de ideia. Morava na escola, a mãe da menina era zeladora, e sabia que Regina não conseguiria entrar sem ser vista.

Regina tinha a ideia fixa de invadir a escola, e seguia tentando. Aos finais de semana, quando ia visitar a amiga, perguntava sobre as chaves. A mãe da menina sabia e nunca deixou o molho de chaves à vista. Só lhes permitia usar as chaves da biblioteca e de uma sala de aula para usarem a lousa. Regina desistiu.

Fez e refez aquela escrita tantas e tantas vezes. Era folha de papel almaço, lembra disso? Engraçado lembrar. Cortava as folhas para ficarem do tamanho do livro, fez uma capa com letra grande e caneta colorida, tinha uma caneta de muitas cores, sete, acho. Regina me contou muitas vezes sobre essa caneta.

Desejava mesmo uma máquina de escrever, sempre pensava. Bem, mas como ela nunca teve a máquina, o jeito foi mesmo escrever à mão. Dias, meses, anos se passaram e o “passar a limpo” não aconteceu. Algumas vezes, ela relia a história do rascunho. Eram muitas rasuras naquele pequeno pedaço de papel, sempre encontrava uma correção a fazer ou uma frase a incluir na história. Queria mesmo era terminar logo a escrita. Pensava sempre a quem mostrar o texto, precisava de uma opinião ou uma correção. Mas para quem? Quem leria? A quem confiaria sua escrita?

Depois lhe ocorria que a escrita era infantil e boba. Então, criticava sua letra, não tão redonda assim, e por mais que treinasse no caderno de caligrafia sempre desafinava a escrita na folha. Desafinava porque não ouvia música fora da máquina de escrever. Com os braços esticados e os dedos em movimento, como se estivesse digitando em uma máquina fazedora de histórias invisível, tentava solfejar para encontrar a cadência produzida através dos toques dos dedos da secretária.

O livro seria presente para a prima, que nunca nem soube da existência da escrita. Aliás, nem ninguém. Escreveu em segredo. Lembra que durante a escrita algo dizia “mas você não sabe escrever, você nem gosta de ler”.

O livro ficou, por anos, junto aos diários, esses sim, cresciam e se acumulavam. A mãe e a irmã sempre tentavam lê-los, escrevia muitas vezes em códigos que só ela conhecia a sequência. Não é que não gostasse de escrever à mão, gostava, passava horas com seus diários e, como todo bom diário, diariamente. Ali, colava suas recordações, papeizinhos de chiclete amassados, ou pequenas flores da primavera da escola, que certa vez ganhou de um menino, que certa vez, em uma festa, deu seu primeiro beijo. Andou abraçada com ele por todo o dia e ao chegar em casa, a escrita que acompanhava a flor, foi doce e cheirosa.

Claro que Regina recontou uma história diferente sobre seu primeiro beijo, tempos depois, mas para mim, foi essa primeira vez que me fez sonhar amor.

O livro adormeceu, morava junto aos diários, antes o rascunho do livro tinha ganhado desenhos, mas ainda não tinha finalizado com as letras bonitas que só existiam nas capas dos livros da biblioteca, ou com as letras quadradas da máquina. Anos depois, com a data do casamento marcada, precisava começar a se desfazer das coisas da infância, nem era tão adulta assim, mas precisava se livrar dela, da infância, das memórias e das alegrias da meninice. A casa que o casal tinha conseguido para morar depois da união era pequena e não haveria espaço para seus escritos, além disso, precisava se desfazer da foto de uma de suas paixões de adolescência, uma foto daquelas pequenas de documento, e do recadinho recebido, um pedaço de papel cheio de declarações.

“Não podia deixar que descobrissem da vez em que saí escondida para me encontrar com meu primeiro amor. Imagina. Eu ia casar, menina, não podia deixar meu esposo saber.”

Foi remexendo nos papeis guardados e diários que encontrou o livro, tentou ler, não conseguiu, era uma escrita infantil e não tinha música. Ao ler, só pensava: mas você nem sabe escrever. Os papeis e diários foram todos para o lixo. O livro não, ainda ia tentar readaptar, dar continuidade ao projeto, reescrever talvez. Era para a prima, que, embora adolescente, ainda mantinha o gosto pela leitura. Ela não, não gostava de ler. A semana passou, o mês passou, a data do casamento chegou. E a vontade que tinha de deixar sua infância para trás era incontrolável. As malas estavam prontas, levaria somente suas roupas para a casa nova. O livro da prima infância tinha quatro folhas de almaço cortadas ao meio, o rascunho eram quatro folhas de sulfite com desenhos.

Acendeu a boca do fogão da casa que agora não seria mais sua, seria a casa da mãe. Com as folhas na mão, começou queimando o rascunho, o fogo logo consumiu metade do papel, assustou-se, a fumaça encheu a cozinha de um cheiro que não lhe parecia agradável, não ouvia o fogo consumir o papel, teve medo de se queimar. Não mexa com fogo, pensou, quase ouvindo sua bisavó alertar.

Largou a folha dentro da pia, ainda com fogo, e o cheiro impregnou. Jogou água, não sabia se tinha se arrependido, mas precisava se livrar da infância. Mais rápido ainda, pegou outra folha e outra e outra. Fez sua fogueira dentro da pia e remexia os papéis para que todos queimassem, a água quase impedia. Queimou até que todos os pedaços de papel estivessem pretos, fuligentos e fossem sumindo pelo ralo.

Tinha certeza de que ali, naquelas folhas, estava o fim da infância, queimou uma a uma.

Queimou o livro.

A prima, crescida, nunca soube da existência da história escrita para ela. Nem ninguém.

Depois de escrever, naquela manhã, assim que o sol nasceu, o filho pequeno acordou, a lida iniciou, o incômodo adormeceu, e ela seguiu. Com olhos de lembrança e um desejo, disse:

“Queria comer mortadela.”

Depois de se casar, agora longe de ouvir a música da máquina de escrever, passou a usar suas mãos para aumentar a renda da família. Tecia peças de crochê, fazia biquinhos nos panos de pratos e muitas outras coisas, às vezes, usava até cola de sapateiro para colar tecido em presilhas feias e vender em quantidades imensas. O casamento era uma tortura.

“Sentia-me presa” - sempre repetia.

Passava dia e noite em casa pensando como conseguir completar aquela renda minúscula. Às vezes, trabalhava nas casas de famílias muito ricas.

“A primeira coisa que eu procurava nessas casas era a máquina de escrever. Mas só achava o piano, que nunca ouvi ninguém tocar.” - resmungava Regina.

Conhecia muito mal o som do piano, não sabia identificar na música que tocava no pequeno rádio, o qual ouvia em casa, à noite, depois que as crianças dormiam e o marido ia pitar lá fora.

“Gostava de música, sabia disso desde menina.”

As crianças cresciam, começavam a trabalhar e ela continuava entre seu crochê e algumas peças que costurava na máquina de costura. Não gostava da máquina, mas a usava de vez em quando, obrigada a consertar roupas da família do marido. A máquina foi presente de casamento. Assim que chegou à casa da sogra, para morar com o marido, sogra, sogro e os irmãos dele, ainda aos dezesseis anos, assustou-se, o que faria? Nunca aprendera a costurar. E ficou assim, pensando como num conto de fadas, daqueles de gata borralheira, onde a princesa era confundida, e precisava cuidar das meias-irmãs bruxas. Ou de sete anões bobos, ou ainda separar o joio do trigo por uma noite toda. Essa era a lembrança que a máquina de costura lhe trazia.

Nesse tempo, se esqueceu da máquina fazedora de histórias. Quando contava, sempre tinha os olhos tristes. Desses olhares que é impossível desviar e que dizem de uma solidão. Como se aquele momento tivesse tirado toda sua alegria.

Só quando saiu da casa da sogra pôde respirar. Já se sentia uma senhora, embora a idade não lhe demonstrasse, mas era, na certidão de nascimento, e no corpo, uma senhora.

“Como mesmo o tempo passou tão rápido?”

Naqueles dias ela estava mais alegre do que costumava ser. Seus netos já rondavam pela casa e, como de costume nos dias alegres, fez pudim.

Hoje, sua memória não é como antes, muitas vezes não se lembra mais e confunde o tempo. Vive agarrada a sua boneca preta, com a pele de pano e cabelos de lã. Cuida dela como quem vive uma infância serelepe, alimenta a boneca e passa suas tardes com ela no colo, ensinando como usar a máquina de escrever. Presente que ganhou há pouco do bisneto.

Coloca folhas e começa a digitar naqueles teclados de som seco, parece escrever como uma criança não alfabetizada uma história longa.

Escute o texto na voz da autora

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*Luciana Aguilar é especialista em Artes-Manuais para Educação e gestora acadêmica. Artemanualista. Docente da pós-graduação Artes-Manuais para Terapias. Pedagoga, atua como professora particular e orientação de trabalhos escolares e de textos acadêmicos. Mãe, estudante do curso de Letras. Escritora. Escreve sobre temas do cotidiano, as coisas ditas pequenas da casa, os fazeres manuais com fios, maternidade e mulheres. Pesquisadora da leitura e dos processos de escrita.